sexta-feira, junho 29, 2007

Enquanto os Deuses mergulham no Hades

Mata-se o pai do filho porque o filho matou uma mãe e não era a dele. Rouba-se o filho à mãe porque uma mãe não pôde ter filhos. Segue-se a pista do «filho da mãe» que raptou o filho do outro porque o “queria”. Rebenta-se com pais, mães e filhos porque esses não são filhos do Pai. E o Pai ri-se dos filhos que andam na terra sem lei. Revoltam-se brancos e pretos porque um não tem a cor que o outro tem. Rezam judeus aflitos porque querem «casa» também. Queixa-se o pobre e o rico porque a vida não lhes corre bem. Chora de fome, o «sem abrigo», porque vê a fartura nos outros e a dele não vê ninguém. Reclama-se a culpa do estado e o estado foi para fora porque: “queixosos não convém”. Há quem bata, quem queime, quem mate, quem esfole, quem roube, quem minta, quem expluda, quem rapte, quem viole e quem sinta ódio por alguém. E, quando olhamos para o umbigo, dizemo-nos tristes porque temos a barriga farta, a boca ainda a saber a mel e na carteira trinta notas de cem. E eu!? Eu sou filho de um pai, que mal conheço, da mãe que mais que amo, irmão de um menino a quem adoro, e a vida corre-me bem. E quando não tenho quem durma comigo, porque não amo (não consigo), adivinho-me sozinho qual «Zé-ninguém». Mas se olhar bem lá para o fundo, onde a criança que veio ao mundo, que não dorme porque a fome, a orfandade, a pólvora, os restos dos outros, o trilho que lhe roubou a perna, e a má sorte o fizeram refém, olho com tanta vergonha do meu queixume, que se me soubesse calar, ouviria nas vozes dos outros a quem não apresentaram sorte, que o que lhes pertence é a certeza da morte e que vida lhes ficou aquém.