segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Hora do chá

Hoje vou fumar pela última vez o meu cachimbo. Estou nesta lentidão que me engole e que transforma o fumo fantasmagórico do meu cachimbo mais espesso. Embalo-me no vai e vem de uma cadeira que faz questão de gritar mais alto que o cantar de um melro. Ainda não choveu e há mais de uma semana que não se vê outra cor no céu que não o cinza escuro. É o assobiar da chaleira que me desperta os sentidos. Já tenho água para o chá. Tenho dois prazeres na vida: saber que o passado já não volta e a certeza de que, enquanto penso isto, já passaram mais quatro segundos. Sinto-me velho e cansado. Não que tenha dores ou que o meu corpo me mostre o peso da vida que tinha. Não. Sinto-me cansado do pouco que fui e do nada que fiz. É verdade que sempre trabalhei e que para muitos dos que conheço seria impensável trabalhar catorze horas por dia numa mina, durante cinquenta e sete anos. Mas é pensar que me cansa. Desde que Matilde morreu que não faço outra coisa. Penso na companheira que tive durante uma vida inteira. Na sua presença constante. No seu jeito enternecedor de dizer meu velho.

Fazes-me falta Matilde. Fazes-me falta porque já não tenho quem me ame. Fazes-me falta porque já não sinto a força de uns braços em volta dos meus. Conta-me uma história. Quero acreditar que amanhã vou ouvir a tua voz desafinada entoar canções de infância. Já não sinto o cheiro das tuas mãos macias. Já não as sinto atravessarem-me o rosto. Também Sonos, o cão, sente a tua falta. Já não corre por entre o canavial tentando fazer justiça à sua raça de caçador. Na verdade também já nem as canas crescem no canavial. Parece que na tua presença se sustentavam todas as formas de vida.

Hoje não fiz a barba. Não fiz a barba porque já não quero cuidar mais de mim. Sim, hoje vou fumar pela última vez o meu cachimbo. Matilde odeia… odiava, que eu fumasse. Dizia que o cachimbo seria o responsável pela minha morte. Não quero chocar ninguém e por isso vou fazê-lo de forma a parecer natural. Não é fumar que vou fazer de forma natural, é ir ter com Matilde. Não gosto de pensar que é suicídio porque não quero parecer cobarde. Prefiro pensar que apenas vou ter com Matilde. E não é a cobardia que me vai fazer desistir da vida. É a saudade. É não suportar nem mais um dia sem ver a minha querida Matilde. Quero fazer parecer que foi de forma natural. Despertei os sentidos com o assobiar da chaleira porque é o apito desta que anuncia o momento da partida. Vou beber “o chá”. Vou beber e adormecer, e acordar nos gestos de Matilde. Sonos pressente a despedida e prova-o com o olhar triste que me lança. Já me despedi da casa onde fomos felizes. Agora quero uma nova morada, aquela em que mora Matilde. Pego no copo com cuidado com o medo de me queimar. É ridículo. Tenho medo da dor que me pode provocar a temperatura, no instante que antecipa a morte. Inicio o ritual. Não o faço de forma demorada porque a ansiedade não o permite. Daqui a poucos minutos vou poder abraçá-la e ouvi-la dizer que sou seu velho. Disfarcei o sabor com hortelã porque, a julgar pelo cheiro, o sabor deve ser intenso. A cada gole que dou sorvo mais uma parte da vida e avanço mais uns metros para a felicidade. Não receio a dor do veneno, receio a vida e a sua solidão. Sinto-me cansado, e não é de pensar porque já quase não penso…sinto-me pesadamente leve…sinto-me………sinto-me ………. Sinto-a